sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Curiosidade e alguma fé

A vida tinha resolvido testar minha resistência. Em quatro meses, eu havia perdido o emprego duas vezes. Uma chacoalhada. Afinal, eu experimentara anos e anos de estabilidade; leiloara com sucesso meu passe três ou quatro vezes, gozara de bons salários e algum reconhecimento. E em que me transformara? Numa quase quarentona vivendo de subemprego, numa empresa que 10 anos antes me encheria de orgulho, mas que naquela conjuntura não passava de uma “repartição” pública, piorada por um chefe instável, agressivo e que gostava de apanhar da mulher e exibir as feridas.

E como desgraça pouca é bobagem, quando recebi o segundo bilhete azul, o namorado de então desaparecera. Da noite para o dia, o homem que perguntava se eu preferiria morar com ele numa casa ou num apartamento, simplesmente evaporou. Assim, do nada. Como se as juras de amor tivessem sido apenas obras da minha imaginação; pura fantasia feminina.  Se não o tivesse apresentado à minha filha adolescente – portanto apta a testemunhar – e a pelo menos três amigas sinceras, eu acabaria acreditando que fora tudo ilusão, delírio, vertigem... 

O sujeito não estava nas páginas policiais, nem nos necrotérios, embora fingira-se de morto, ou nas UTIs, ainda que fosse precisar de uma vaga se eu o encontrasse pela frente. Mas quando se tem conta pra pagar e filho pra criar, a engrenagem tem de continuar funcionando mesmo que o coração peça repouso e reclusão.

E em mais um dia de expediente na “repartição”, atendi ao 567º telefonema do dia. Um rapaz que não me conhecia – mas que amealhara “ótimas referências” a meu respeito, convida-me para uma entrevista de trabalho. Tão desanimada eu andava, que nem coloquei muita fé. Ainda assim, aceitei.

Era mais um trabalho temporário... Mas sendo os vencimentos e o desafio bem maiores que os da “repartição”, coloquei-me à disposição e esperei ansiosa uma resposta, que veio rápida. “Temos a primeira reunião amanhã”, anunciou meu quase novo chefe ao telefone no dia seguinte à entrevista. Eu ainda precisava passar pelo crivo do contratante, para só então abrir mão definitivamente do chefe psicopata. Foi uma longa noite, tamanha a ansiedade por recuperar a energia, a vontade de trabalhar.

Como custei a pegar no sono, despertei em cima da hora e, para piorar, o trânsito não estava a meu favor. Foram 15 minutos de atraso. Muito para o meu costumeiro rigor. Lembro-me de usar um vestido estampado, de fundo azul, com uns desenhos abstratos em diversas cores. Meio surrado. Mas, se o vestido era batido, os colegas eram novos, e isso resolvia tudo. O contratante e os demais quase-contratados já estavam todos lá. Não fiquei constrangida. Cumprimentei a todos pausadamente. Eu estava verdadeiramente feliz e grata. Acho que isso pesou para cacifar meu nome.

Quase fazendo concorrência ao contratante, outro sujeito destacou-se na reunião. Dizia-se ex-padre, ex-preso político, ex-marido de alguém; ex, ex.... A primeira impressão não foi das melhores. “Sujeito arrogante”, pensei. “Cheio de empáfia”. Oras, como esperar algo diferente de um gaúcho num primeiro encontro?

Mas o camarada, hábil e surpreendentemente generoso, não demorou a virar o jogo. Transformou minha intolerância em curiosidade e cumplicidade. Aprendi a partir dali a admirar um homem que dizia conhecer o mundo pelos livros ou pelas frestas dos confessionários. Ficara muito tempo no claustro da batina ou na limitação de um xadrez. Não por acaso, tinha ali, entre os 60 e 70 anos, uma imensa energia para devorar tudo e todos. Sofria de sede e de fome da vida real.

Eu ganhara um novo trabalho, instigante e desafiador, e, de quebra, fora premiada com um convívio dos mais ricos. Se falávamos de Jesus? Não lembro de ele ter sido citado. Mas falávamos substancialmente de um interminável evangelho de sentimentos, de alegrias, de dúvidas, de “pecados”. Aquele homem quase erudito tinha tanto a dizer quanto tinha de disposição para ouvir. Confessei-me mil vezes. Jamais me penitenciou.   

No dia em que encerramos nossas responsabilidades no projeto, sentamo-nos os dois num café. Eu de novo ficaria sem trabalho, sem perspectivas imediatas. Chorei compulsivamente, derramei todos os medos. E ouvi dele palavras de um carinho imenso, de incentivo e de acolhimento. Saí otimista, renovada. E já cheia de saudade.

Se o encontrei de novo? Umas poucas vezes, apenas uma das quais a sós. Foi tudo tão rápido quanto intenso: inconfessáveis dez minutos de um perturbador e comovente silêncio.

Algumas pessoas, perto ou longe, são para sempre!