sábado, 22 de dezembro de 2012

Clara: a sorte de Gabi


Na última quinta-feira, duas mães e seus filhos me emocionaram profundamente, e de maneiras muito antagônicas. Naquele dia, acordei cedo para cumprir tarefas de rotina, e às 6h30 estava à frente do computador. Depois de rastrear o noticiário, desci para o café da manhã. Às 7h13, fui interrompida por um torpedo da amiga Angelica Nicoletti.
Angelica é amiga de muiiiiiitos anos. Amiga amorosa e de bom astral, que vejo menos, muito menos do que gostaria. Mas nos compreendemos nesta distância e driblamos as dificuldades vez ou outra pra pegar um cinema, tomar um café... ah, e é sempre tão bom. 
Num desses encontros que nossas agendas permitem, fomos à praia. Deve fazer uns dois anos... E foi nesse passeio, por meio de Angelica, que encontrei a psicóloga Clara Eugenia San Martin, e conversei com ela pela primeira vez.
Lembro-me que fomos as três passear em Santos. À beira mar, já noite caindo e algumas cervejas depois. Falamos longamente, sem pressa. Coisas de mulher e coisas de mãe. E contamos de nossas filhas únicas: a minha Fernanda; a Gabriela de Clara. Nossas meninas de 20 e poucos anos. Cheias de vida; cheias de amor.
Fiquei fã de Clara. Talvez por afinidade. Talvez por admirar sua energia e capacidade de superação. E mais fã fiquei ao acompanhar pelo Facebook a saga que passou à espera de um coração para Gabriela.
Lutavam juntas, dia após dia. Nem a saúde oscilante de Gabriela as abalava. As mensagens de ambas eram sempre otimistas, sempre abraçando cada momento do presente e de olho no futuro... De longe, eu as via vivendo intensamente. E acho que de verdade viveram.
Na quarta-feira, o coração tão esperado por Gabriela e Clara chegou. Mas, no dia seguinte, o torpedo de Angelica me trazia uma triste notícia. Gabriela não resistira ao transplante.
O que dizer a uma mãe que perde um filho? Não importa que idade tenha; não importa quantos filhos tenhamos... A lógica invertida da natureza é incompreensível pra mim. Chorei e rezei por Gabriela, sem nunca tê-la conhecido pessoalmente. E pensei: Que bom ter sido Clara a mãe de Gabriela. Que bom ter sido Clara a acolhê-la nessa jornada à espera de um coração que deveria salvá-la. Que sorte de Gabriela ter Clara por perto; ter Clara por aliada; ter Clara por cúmplice. Que rica a caminhada ao lado de Clara.
E fui para o aeroporto com Clara e Gabi me ocupando os pensamentos.
Voo toda semana no trecho Brasília-SP... Em geral, sem novidades, sem sobressaltos... Mas aquele vôo me reservava mais uma triste emoção num dia já tão triste.
Sentei-me na janela, na última fileira à esquerda. Um jovem ocupou a poltrona do corredor e logo mais um senhor acomodou-se no meio. Conversamos bastante enquanto o embarque prosseguia. Eram dois paraibanos que já estavam em sua primeira conexão a caminho de Porto Alegre. Simpáticos e falantes, me distraíram.
Já quase ao final do embarque, uma família caminha pelo corredor de forma barulhenta e nos chama a atenção. Passamos a observar a movimentação. Uma mulher loira, tendo lá seus 40 anos (pouco mais, pouco menos), seu casal de filhos pequenos (ela uns três; ele uns cinco); a mãe dela, o marido cinquentão e uma jovem negra. A loira liderava o grupo com comandos ríspidos e em tom mais alto que o necessário: “você senta aqui; não, ali... quais são as outras poltronas?” Era tão agressiva que eu e meus companheiros de vôo comentamos a desproporção das atitudes dela.
A comissária ofereceu-se para ajudar, e foi também destratada pela mulher, que,finalmente, sentou-se com os filhos na última fileira à direita. O restante do grupo acomodou-se muitas fileiras à frente. Ao que pude ver, próximo à cabine.
Os passageiros ao meu lado, cansados da viagem que começara no Nordeste, cochilaram rapidamente após a decolagem. Eu me mantive acordada.
Percebi a mulher muito agressiva com as crianças, pegando-os com força pelos braços, mesmo estando os dois sentados e quietos. Quando ela ofereceu biscoitos e os dois recusaram, ela os chacoalhava e os obrigava a aceitar.
E não tirei mais os olhos dela. Até que, minutos depois de decolarmos, flagrei-a dando na cara da menina. Bateu três ou quatro vezes seguidas, com mão espalmada, provocando estalos. Imediatamente acionei o botão para chamar o comissário. Ele veio rapidamente e falei em tom alto: “essa senhora está agredindo as crianças. Ela acabou de dar na cara da menina, seguidamente”. O comissário virou-se para a mãe e perguntou: “Está tudo bem aqui, senhora?” Ela assentiu.
Minutos depois, o comissário retorna à minha fileira: “reportei a agressão ao comandante; ele pergunta se a senhora deseja denunciá-la quando pousarmos”. Tendo certeza de que a mulher ouvira minha queixa, respondi: “Acho que já foi constrangimento suficiente pra ela. Creio que se conterá. Deixemos assim”.
Mas eu estava enganada. A crueldade daquela mãe (incomoda-me dar esse título a ela) não tinha limites. Passados mais 15 ou 20 minutos, assisto-a agarrar com força numa das orelhas do menino e falar alguma coisa ao ouvido dele, chaqualhando-o. Pus-me a gritar: “a senhora não pode agredir o menino; a senhora já bateu na menina; agora está agredindo o menino; eu estou vendo; eu a estou observando todo o tempo”. Metade do avião que podia me ouvir virou para trás, enquanto ela argumentava:
- “São meus filhos”
E reagi: “Isso não lhe dá o direito de fazê-los de saco de pancada. Sua estúpida, ignorante”
- “Meta-se com a sua vida.”
- “Isso a senhora vai dizer  para a polícia”
E chamei de novo o comissário:
- “Por favor, diga ao comandante que aceito a sugestão dele. Quero denunciar quando pousarmos”.
E permanecemos todos na aeronave até os policiais federais chegarem.
Um deles tentava me dissuadir da denúncia: “a senhora sabe que uma mãe pode repreender os filhos...”.
- “Sei sim. Sou mãe, tenho sobrinhos... E já dei tapa na bunda deles todos. Mas eu sei o que vi aqui. E vou denunciar”.
Enquanto isso, o menino perguntava para a mãe: “Por que não podemos descer do avião”.
- Porque a moça chamou a polícia.
- Chamou por quê?
- Por que bati em vocês?
- E não pode?
Se ele entendesse, se eu pudesse responder, eu teria dito: “Não, menino, não pode! E é porque não pode e porque o que sua mãe fez foi cruel e desproporcional que chamei a polícia. Chamei para tentar evitar que você apanhe mais. Para evitar que essa dinâmica de violência perpetue sua infância e a da sua irmã. Mas eu não podia e não devia, naquele momento, reportar-me à família.
E fomos todos (eu, a agressora e a família dela) para a delegacia de Polícia Federal no Aeroporto de Guarulhos, depois de a delegacia civil, ali também, recusar o caso.
Por sorte, fui atendida pelo delegado Gilberto Castro, que tem no currículo cinco anos de Vara da Infância e mais um tanto em Delegacia da Mulher. Ele me ouviu atentamente. Contei o que vi. Ele disse: “devemos abrir inquérito”. Com a Lei da Palmada, basta uma testemunha para o agressor ser preso. Não precisa de marcas, de hematomas, de sangue. Então disse ao doutor que me daria por satisfeita se ele chamasse a mulher e a família e os informasse sobre a lei, mas que não abrisse inquérito. Ele concordou. Anotou no livro minha queixa e minha solicitação de encaminhamento. E me dispensou para que eu deixasse o aeroporto antes dela. Antes, porém, contou que o caso lhe tocava especialmente naquele dia. “Soube ontem que serei pai”.
A mim o caso tocava especialmente também. Aqueles pequenos, pude ver, não tinham a mesma sorte de Gabi. E rezei por eles também.

Um comentário:

  1. Infelizmente, parece que tem gente que não deveria nunca ter a graça de ter um filho.

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